Ao sul, uma cidade de pedra habitada por homens e mulheres mascarados, mestres feiticeiros e seus escravos, marionetes de uma bruxa ancestral; ao centro, planícies verdejantes e colinas até o horizonte, pontilhadas por ruínas de uma era esquecida; ao norte, montanhas tão altas que os picos se perdem nas nuvens, assolados pelo gelo e pela neve, os ossos de um titã caído aprisionando todos às terras ao sul; nos céus, três sóis brilham, e o dia dura anos e a noite algumas horas. Eis o mundo de Elandrir, em que as trevas espreitam sob a luz constante e lendas ganham vida.
Várias são as lendas que cercam as Montanhas do Norte, mas há uma que se destaca, uma das poucas histórias divididas entre todos os povos e nações de Elandrir, talvez por preceder quase todos eles: uma torre branca, oculta pela neve e pela neblina durante o longo dia; a prisão de um demônio, eternamente guardada por dois cavaleiros fantasmas. Entretanto, quando a verdadeira escuridão cai, uma luz pode ser vista do topo, um sinal da besta ali aprisionada para seus pares, um pedido desesperado por socorro. Ah, a torre existe, assim como os cavaleiros fantasmas, contudo, mal conseguem imaginar que a construção não guarda um demônio, e que a luz não é um pedido de socorro. O prisioneiro é uma jovem imortal, uma garota de cabelos negros e olhos vermelhos, uma filha pagando o preço pelos erros do pai, e a luz é o seu lembrete do porque ela deve permanecer eternamente aprisionada. Quem ela é? Quem a prendeu? As respostas para essas perguntas jazem nas ruínas no coração de Elandrir em uma época em que não eram ruínas, mas cidades e vilas e castelos, quando o Império Asariel dominava a maior parte dos territórios conhecidos. Contudo, não é ali que a história começa, não, ela começa ao sul, nas cidades gêmeas de Välmud e Iridasir, e não com a prisioneira, mas com aquela que a amaldiçoou- uma mulher de cabelos cor de ébano e olhos rubi.
Livanna nasceu acorrentada- tal era o destino da filha de dois escravos nas Cidades Gêmeas. Suas costas foram marcadas com magia logo após nascer, o pedigree que a tornaria uma mercadoria valiosa para seu senhor, a linhagem desde seus primeiros ancestrais acorrentados. Não era ninguém, porque ser ninguém significa ser uma pessoa, e ela não era uma pessoa, mas um objeto, uma coisa. Todavia, Livanna também tinha algo que desde cedo a tornou diferente, e que selou o seu destino tanto quanto seu nascimento: a beleza. Aos seis anos, foi dada pelo seu dono a uma cortesã para sanar a dívida que tinha. A Senhora Alayse não a via como uma criança, só um objeto, e ela se acostumou a ser leiloada tão logo pisou dentro do estabelecimento. Treinada nas artes da sutileza e da sedução, especialmente para entreter os feiticeiros mais abastados de Välmud e Iridasir, Livanna tornou-se a cortesã mais lucrativa de madame Alayse- e também a mais bonita. O tempo parecia ter o efeito reverso em si, e aos vinte e três anos sua fama havia ultrapassado os limites da Cidade; pessoas vinham de todos os cantos do mundo por uma noite consigo. Entretanto, não foram apenas os mortais que Livanna cativou, sua aparência tentou mesmo aos Deuses. Ela não tinha como saber quem ele era, era só uma garota fazendo o que lhe era mandado, não uma feiticeira com poderes especiais. Mas Auraia não era humana, e a ela não interessava as razões da cortesã, só que seu filho fizera um voto a si e o quebrara, e a jovem que o tentara a traí-la não poderia sair impune. Ah, Livanna poderia lhes dar uma noite de prazer- mas na manhã seguinte, não haveria nada senão morte.
Os Senhores de Välmud e Iridasir iriam executá-la, deixá-la viva era um perigo a todos eles. Na manhã seguinte, quando foram retirá-la de sua cela, o homem que deveria guardá-la jazia morto e Livanna não estava em lugar algum a ser vista. Ninguém sabe ao certo como ela escapou, mas poucos meses depois, a maior rebelião de escravos estourou, e não é difícil imaginar que eles tenham a ajudado. Entretanto, a própria Livanna não fez parte da Rebelião: aquela altura, ela já estava longe, no Império Asariel, uma terra em que feiticeiros eram colocados em coleiras e escravizados, em que o exército era a lei e cuja família real carregava o estandarte e o sangue da própria Auraia. Ela só queria uma vida longe de tudo e todos, e os anos se passavam, mas a idade não vinha, e o tamanho da punição da Senhora da Luz finalmente a atingiu: para morrer, mataria quem a amava de novo e de novo. Não havia outra maneira. A princípio, Livanna resistiu e se escondeu do mundo, mas não havia para onde correr, não havia como se esconder de Auraia, não quando a luz estava quase sempre no céu, observando a tudo e a todos. Com o tempo, a ex-escrava simplesmente parou de se importar, parou de se esconder, e resignou-se a sua sina. Os Sacerdotes do Sol lhe olhavam torto, mas não a incomodavam, nem nunca tentaram colocá-la em correntes- a maldição era uma proteção, de certo modo.
O que Auraia não previu era que um de seus próprios se apaixonaria por Livanna. Irmão mais novo do Príncipe Coroado, Caius Kyminianus tomara interesse pela história da mulher amaldiçoada desde a primeira vez que a ouviu do Grão-Sacerdote. Quem era ela, e porque Auraia a havia amaldiçoado? Havia ela aliado-se a Noctem? As explicações que lhe eram dadas não eram satisfatórias, e o fascínio por Livanna perdurou até a vida adulta, quando decidiu ver a infame mulher e conseguir as respostas que tanto queria. Ao vê-lo em sua porta, ela viu uma oportunidade de atingir Auraia, e o convidou a entrar, com toda intenção de fazê-lo se apaixonar por ela, como fizera com todos os outros- mas os dias e as semanas se passavam, e Livanna não encontrava a coragem de machucar Caius, que nada lhe tinha feito, que até então só fora gentil e atencioso. Ela veio a amá-lo, e não conseguia suportar a ideia de que seria culpada por sua morte. Do outro lado, Julius alertou o irmão a ficar longe, que nada bom sairia de envolver-se com uma amaldiçoada, mas Caius estava surdo aos pedidos do seu Imperador. Ele não queria ninguém, queria Livanna, e se isso causaria sua morte, que assim fosse- pelo menos morreria do jeito que queria, feliz.
Ela não conseguiu negar o pedido dele, e na manhã seguinte, quando Caius estava morto ao seu lado, Livanna chorou. Tomando seu tempo, ela embalsamou o corpo dele, fez uma pira e o queimou, o rito fúnebre típico do Império, e desapareceu. Entretanto, o Imperador não perdoaria tão facilmente, e a elite do exército foi mobilizada sobre uma única diretriz: capturar Livanna viva. E assim eles o fizeram: dois anos depois, no dia da verdadeira escuridão, foi trazida diante de Julius com ferimentos por todo o corpo, correntes ao redor do pescoço, nos pulsos e nos tornozelos. Ela tentou falar, mas ele se recusou a ouvir. Caius estava morto, e ela era culpada. Ela o havia seduzido, e havia feito aquilo de propósito. Enganara seu irmão, e pagaria o preço. Presa a uma estaca de madeira, o fogo se aproximando enquanto a multidão gritava, ela levantou os olhos para Julius. Dor, ódio e desespero tomaram conta de si, o desejo de vingança; e então, só então Livanna fez o que tantos antes a acusaram: ofereceu sua alma à Noctem em troca de poder, e olhando o Imperador, ela o amaldiçoou: ele saberia a dor que ela sofreu, o desespero de uma maldição sobre um inocente. E não poderia fazer nada para mudar a sina.
Julius não lhe deu ouvidos, porque daria, se estava completamente normal? Contudo, quando sua mulher quase morreu no parto e o médico - pálido e aterrorizado - lhe estendeu a filha, o Imperador sentiu o chão sumir. Pele pálida, cabelos cor de ébano e olhos como duas pedras de rubi- iguais aos da assassina do irmão. Livanna aprendera a crueldade com Auraia, e usara bem da lição.
Se a maldição de Livanna era matar para morrer, a de Aristanae era viver para matar. Tudo o que ficava muito tempo ao seu redor adoecia e morria: os animais, as plantas, as pessoas- nada, nada estava imune ao seu poder. Nunca viu a mãe- a Imperatriz jamais se recuperara do parto, era fraca e doente, e aproximar-se de sua menininha era uma sentença de morte. Seu quarto era feito de espessas paredes, sem janelas, com estantes e livros que após algumas semanas desfaziam-se com um mero toque. Abençoado com a vida longa e resistência dos Kyminianus, Julius era sua visita mais frequente, e não raras eram as vezes que ele a abraçou e chorou, mesmo sabendo do perigo, mesmo sabendo que poderia adoecer- se fosse para morrer, que morresse. O que acontecera com sua filha era sua culpa. Os poucos amigos que a princesa tinha eram crianças terminais ou com feridas graves, colocadas junto de si para lhe fazerem companhia e para terem uma morte indolor. Se por um lado aquilo aliviava a solidão, por outro sedimentou em Aristanae a ideia que ela só trazia tragédia, e que a morte era a melhor opção para si.
As paredes diminuíam a força de seu poder, mas não o continham totalmente- aos poucos ele as atravessou, e tudo além do seu quarto foi afetado. O Mal Negro, como chamaram pelas manchas que apareciam na pele, começou do palácio por serventes e animais infectados e se alastrou pela capital, pelo Império e além, ceifando a vida de milhares- a Imperatriz antes de todos. Os Sacerdotes e a nobreza passaram a pressionar Julius pela vida de Aristanae, mas o Imperador recusava-se a matar a própria filha. Foi a própria princesa, então com onze anos, que se ajoelhou diante do pai e implorou que se ele não queria matá-la, pelo menos achasse uma maneira de salvar os inocentes que morriam por sua causa. O que aconteceria com ela não importava, ela só queria que parasse. E porque ela pediu, Julius faria o impossível para atender- até recorrer aos feiticeiros que desprezava. O Império projetou e construiu a torre usando de todo o mais avançado conhecimento que possuíam para suprimir o poder dos feiticeiros, e Välmud e Iridasir forneceram os cavaleiros fantasmas que a guardariam pela eternidade. Comida e água não era uma preocupação- ela não precisava de nenhum deles. Tudo no topo da torre era feito com o mesmo material das paredes, e as prateleiras eram encantadas para reabastecer os livros quando terminassem, cópias de obras escritas fora de seu confinamento.
Quando a construção terminou, Aristanae despediu-se de seu pai e do irmão pequeno, adentrando a torre para nunca mais sair. Talvez, do seu trono, Auraia tenha sentido pena da menina, da solidão e do silêncio que seria sua vida, e talvez por isso tenha lhe dado o dom da luz: um prêmio pelo dever cumprido, do sacrifício digno de uma Kyminianus, mesmo que a própria garota achasse suas motivações egoístas. No começo, ela contava os Falsos Crepúsculos, quando o menor dos sóis, Caestias, o Branco, desparecia no horizonte e o mundo esfriava, quando o povo se deitava para descansar até a Falsa Alvorada; entretanto, com o passar dos anos, ela deixou de contar. Não fazia sentido contar, se nunca ia sair dali. Aos poucos, a fachada de que estava tudo bem, que ela estava bem e satisfeita começou a ceder, substituída pela melancolia profunda e pela solidão- quantas vezes ela chegou à beira da loucura? Quanta vez gritou e chorou, quantas vezes tentou tirar a própria vida? Quantas vezes, na verdadeira escuridão, ela se viu brilhando e foi relembrada de que não podia, do que acontecera quando estava livre? Quantas vezes cobriu seu quarto com a palavra “Morte” de cima abaixo, só para desaparecerem quando dormia? Foram séculos passados assim, até que enfim só sobrou a melancolia. Ela merecia aquilo pelas vidas que tirou. Ela merecia. Aristanae teve de convencer a si mesma de como não valia nada, teve de odiar a si mesma para manter a sanidade e voltar a seu estado anterior, para se olhar no espelho toda Falsa Alvorada com um sorriso de que estava tudo bem.
E quando só sobravam ruínas decrépitas do Império Asariel, quando Livanna fora esquecida e ela mesma se tornara uma lenda, uma figura apareceu em sua torre, aniquilando os cavaleiros fantasmas, e lhe fazendo uma oferta: o ajudasse, e ele quebraria a maldição que fora lançada em si. Não voltaria a matar, não voltaria a causar mais mal a ninguém- estaria livre para fazer o que quisesse, e poderia enfim morrer. E assim ela o seguiu para Shyamal, tornando-se uma dos Seven Lords.