Catedral da Luz

O som das grandes portas douradas se abrindo preencheu o salão, e as sombras das figuras na porta de entrada se extendiam, por conta do sol, até grande parte do grande corredor que se encontrava, junto de outros seis caminhos de quartzo branco, no centro, onde existia um altar rodeado por três colunas no mesmo estilo em espiral que as torres das construções da cidade. No entanto, não fosse pela reverência silenciosa reservada a lugares sagrados, as semelhanças para com uma igreja acabavam ali: o altar no centro, a ausência de bancos e um mar de pequenas velas brancas acesas que ocupavam grande parte do chão, com um brilho trêmulo quase imperceptível pelo sol que banhava a catedral.

Rhysäel se encontrava no centro, a cabeça baixa até ouvir o som das grandes portas se abrindo e ter suas reflexões interrompidas. Seus trajes eram compostos por um manto branco com o capuz rebaixado, tornando difícil de se ler as inscrições bordadas em fios dourados em suas abas, fechado na frente por um pino em formato de uma pena; a camisa por baixo do capuz era lilás e de gola alta, de um tecido que parecia acompanhar o corpo, ainda que encoberto pelo longo manto. Abriu os olhos dourados devagar, e olhou na direção das janelas que permitiam a entrada da luz do sol uma última vez até se virar na direção dos estranhos que adentravam naquele solo.

- Espero que a recepção de Maegelle não tenha assustado vocês. - ele comenta, abrindo um sorriso calmo. - Sinto que talvez já tenham sido questionados sobre isso, mas quem seriam vocês?

Ela faz um pequeno aceno com a cabeça em sinal de respeito, e põe-se a falar, ao ver que os outros não tomaram a iniciativa. 

- Não há problema, compreendemos as circunstâncias que tornaram tal recepção necessária, nossa presença aqui deve ser tão surpreendente para vocês quanto para nós mesmos. - Ela afirma educadamente, endireitando as costas ao adquirir mais confiança.- Eu sou Sophie. E esse são Demitri, Elyss, Nayelli, Sora, Keith, Avril e Kayel. - Olha para cada um dos presentes quando diz seus nomes,.- Nós... Não somos desse mundo. - Conclui, não encontrando nenhum eufemismo ou forma de dizer aquilo que soasse menos surpreendente.

- Ainda assim, o receio que os impede de falar mais abertamente não deve ser produto, apenas, da súbita viagem. - ele responde, com uma risada abafada, perceptível apenas pelo movimento dos ombros. - Devo retribuir a apresentação: sou Rhysäel Aer'Dëandlion Imorther. Creio que nossa Maegelle tenha usado o termo "superior" ou algo do gênero, mas peço que não o considerem, assim como vocês ela também não é de nossas terras, e alguns resquícios da ordem em que servia ainda persistem entre seus termos. Supervisor seria um termo mais correto.

O tom calmo não desaparecia de sua fala em nenhum momento, e toda a sua figura exalava um teor de serenidade e harmonia, não fosse pelos suspiros pesados que de vez em quanto soltava ao terminar de falar, como se um peso recaísse sobre seus ombros.

- Supus que não fossem, como a maioria dos que aqui habitam. - ele diz, começando a caminhar na direção deles. - Vossos nomes não me soam estranhos... Talvez seja o caso de já existir aqueles de mesma origem que vocês entre nós, então acho que é uma grande oportunidade para uma esperada reunião. Mas antes, gostariam de perguntar alguma coisa? Parecem aflitos.

- Alguns como nós? - A surpresa era clara em sua fala. Balançou de leve a cabeça, afastando-a. - ... Onde nós estamos? Viemos parar aqui ao investigar uma singularidade mágica após acontecimentos... Perturbadores, por assim dizer, no nosso mundo.

Ele pisca, diante de todo o desconhecimento que pareciam apresentar. Os mais velhos do grupo se preocupavam em olhar em volta, só voltando sua atenção para quando ele começava a falar - não podia culpá-los, supondo que os jovens estavam sob a supervisão deles.

- Ekalyon, imagino? - ele apenas diz, chamando a atenção de todos. - Me parece que sim, e por isso tenho certeza que nosso encontro não poderia se resumir a uma mera coincidência. A terra em que se encontram é Ishmerai, agraciada pela luz, mas passamos por tempos de ameaça, em que sombras pairam sobre nossa conquistada paz, e essa pode ser a origem da singularidade que mencionou.

“Como ele...”

Ela para e balança a cabeça, lembrando-se do que Rhysaël dissera antes: havia outros como eles naquele lugar. Ishmerai. Nunca lera sobre lugar algum com aquele nome, sequer em livros, ou quando l Demônio sussurrava em sua mente.

- Exato. - Ela afirma, mais por reflexo do que por qualquer coisa, e o cenho vai franzindo a medida que o bispo continua sua fala. Sombras pairando sobre a paz, e com conexão a Ekalyon... Pelos Deuses, será que estariam à beira de um novo confronto, tão logo após o fim de Near e da Getsukai? – De onde vem essas sombras, esse poder, e qual o interesse deles em nosso mundo? - Indaga devagar, parte de si temia as respostas.

Ele suspira pesadamente, como se o assunto o deixasse inquieto, ou talvez fosse... a quem estivesse direcionando-o: sua aparência traía a idade que tinha, o que apenas transparecia pela calma e experiência refletida em seus olhos, mas aqueles que estavam à sua frente? Crianças.

- As sombras são um mero espelho da luz que as cria, conceito tal que eu suponho não soar incomum aos vossos ouvidos, enquanto guardiões. - ele começa, mas balança a cabeça. - Não pretendo prendê-los aqui para uma aula de filosofia, não se preocupem, mas se querem saber da origem dessas sombras, não há outra forma. Nosso mundo foi criado da harmonia desses dois aspectos, do contraste dessas forças, Ishmerai e Shyamal... Mas talvez seja o desejo de toda a sombra um dia devorar a luz e recomeçar tudo, e nossas terras não são capazes de sustentar outro confronto. - continua, e a sombra sobre seus olhos fazia parecer que a mera menção lhe trazia dor. - Shyamal volta a se reeguer e está se preparando para conquistar tudo ao seu alcance, e não demorará muito apra que sua força se manifeste para além de seu território.

– Então porque gastar forças atacando o nosso mundo, ao invés de tentar conquistar esse antes, ou dividir as forças? - Era a única parte que lhe fazia franzir o cenho: o que, exatamente, ganhavam ao invadir Fantasy World antes de seu rival histórico? Se entendera bem Rhysäel, não era a primeira vez que Shyamal tentava algo do gênero.- E, já que ainda estão aqui, porque agora Ishmerai não tem mais a força para impedi-los?

- As duas questões se complementam, na verdade. - ele inicia. - Nossas forças hoje são apenas capazes de guardar uma das frentes pelas quais Shyamal pode atacar, mas suponho que a arte da guerra não lhes seja estranha, e daí o interesse em vosso mundo: no momento, é o mais próximo dentre os outros alinhados para alcançar e, mesmo dividindo as forças, como bem apontaste, mais vale um inimigo cercado do que uma única frente de batalha. - ele continua, suspirando. - Todas as vezes que nos saímos vitoriosos foram apenas o suficiente para forçá-los de volta para seu ninho, mas a ameaça sempre reaparece, mais forte, mais resistente, e nossas próprias forças não são capazes de se reestabelecer na mesma rapidez, afinal, não somos uma nação voltada para a guerra, ainda que esta nos persiga. Assim, da mesma forma como fomos capazes de fazer com que nosso pedido de ajuda chegasse aos ouvidos das almas de vosso mundo que se aliaram a nós para nos proteger, não é impossível presumir que o reino de trevas possa fazer o mesmo.

Eles ficam em silêncio, refletindo sobre o que Rhysäel dissera. Fazia sentido, ela tinha de admitir, e sentiu seu coração apertar com o terminar das palavras do Bispo. Teve vontade de rir, embora não tivesse ânimo algum: então Fantasy World estava em perigo graças a uma coincidência? Os Deuses que governam o Destino e a Sorte deveriam odiar seu mundo, sem dúvida.

- Então... Aparentemente, nosso objetivos se alinham. - Ela afirma com cuidado, trocando um olhar com os outros guardiões antes de prosseguir.- Acho... Que podemos ajudar um aos outros, sendo assim. - Como, exatamente, não possuía tanta certeza.

Ele recebe a afirmação de Sophie e depois de alguns segundos, aparentemente tomados para processar a mensagem, assente com um sorriso em face, silenciosamente, de uma forma que pareceria natural não fosse a relutância espelhada em movimentos cuidadosos, como se o ato lhe pesasse profundamente.

- Meu coração se enche de contentação ao ouvir essas palavras, só lamento que as condições não sejam das mais favoráveis para tal encontro... - ele faz como se fosse continuar, mas é interrompido.



- Antes, gostaríamos de falar com os outros de nosso mundo que estão aqui, se não for problema. - ele se intromete antes que Rhysäel continue, não dispensando um olhar acusador na direção de Sophie, mesmo que só por meras frações de segundo. Demonstrar que o 'grupo' não era tão unido quanto parecia não lhe soava conveniente. - Assim teríamos como entender melhor da situação, claro.



Ele muda sua atenção para Kayel subitamente, como se estivesse se lembrando da presença dele e de Avril apenas após sua manifestação. No entanto, se fora pego de surpresa ou se apenas fora uma mera inquietação pela interrupção, não era possível definir, uma vez que recompusera sua compostura no mesmo instante.

- É claro. - ele responde, e faz como se tentasse se lembrar de alguma informação importante, levando uma das mãos à cabeça o suficiente para exibir uma jóia tranlúscida e reluzente, cujo centro se alternava de cor, ainda que sempre envolto por uma aura dourada, presa em sua mão por correntes douradas no pulso e em seu dedo médio, como um anel. - Devem encontrá-las nos Jardins, ao sul da praça central.

Ouvindo as palavras de Rhysäel e mais relaxada com uma possível aliança e que os intrusos - não, visitantes, corrigiu-se - não eram, de fato, servos de Shyamal, ela abre as asas e plana até o grupo, pousando próximos a eles com leveza, um pé atrás do outro.

- Seremos vosso guia até lá, para não se perderem.- Com um breve aceno de cabeça, ela faz um movimento para eles seguirem-na, estabelecendo um passo lento para si que estava voando, mas devagar o suficiente para o grupo acompanhá-la sem maiores problemas, saindo da Catedral.

Os guardiões se despedem de Rhysäel antes de começarem a seguir Maegelle, uma vez que o bispo se dispusera a fazer uma reverência ao notar a partida do grupo, só então dando de costas para eles e voltando para o altar no centro da estrutura.

Tendo observado toda a troca de mensagens da sombra de uma pilastra, um livro encostado próximo ao corpo, ele solta um suspiro pesado, quase pesaroso, antes de pisar diante da luz e aproximar-se de Rhysäel, observando o fechar das porta assim que o último guardão se retirara, deixando-os sozinhos na Catedral.

- E as peças aos poucos caem em seus lugares.- Sua voz era suave e baixa, pequena até, carregando um tom fatalístico.

Ele observa a chegada de Valysar, mas logo depois desvia seu olhar para o vitral que permitia a entrada da luz que iluminava todo o local.

- Nem todas. - ele corrige, suspirando pesadamente. - E como você está se sentindo? - ele pergunta, ainda que não vire a cabeça para encará-lo diretamente, afinal, a pergunta não era, necessariamente, tão direta ao próprio arcebispo quanto parecia.

Ele agacha-se próximo a uma das velas, levantado-a do chão e equilibrando-a na palma, como se mensurando. Então era esse o peso de uma vida.

- Não há começo, meio ou fim. Um limbo, uma contradição. - A voz dele soava distante, como se não estivesse ali.- Eu existo. - Sentenciou, por fim.