Há incontáveis séculos, quando o universo ainda poderia ser considerado jovem e os Tronos estendiam seus domínios pela imensidão cósmica, Eslien criou um mundo de beleza estonteante: colinas e planícies verdejantes, montanhas com picos nevados, cortadas por rios perenes que desaguavam em grandes lagos cristalinos, extensas florestas transbordando com vida selvagem. Quando seu trabalho como escultora terminou, o Trono da Firmamento voltou-se para criação e, com Aisyah ao seu lado, deu origem a sua obra prima: um povo de feições delicadas e pálidas, a quem chamou de Serafins.
Em um momento, não havia nada; no outro, um povo inteiro despertava à beira dos lagos, saíam desnorteados da linha das árvores. Usando de sua própria energia, Eslien daria origem àqueles que seriam os guias da raça, ao mesmo tempo governantes, juízes e guardiões: os Arcanjos. Não eram diferentes dos outros Serafins em constituição corporal e nas feições, mas seus olhos eram platinados como metal líquido, e em suas costas cresciam quatro pares de asas cintilantes. No começo não possuíam nomes, não precisavam deles; entretanto, quanto mais conviviam com seus protegidos, mais os Arcanjos passaram a se assimilar com eles, e com o tempo deixaram de ser conhecidos como a Trindade para se tornarem Hiranys, Calthea e Nessiah. E sob seu olhar o mundo ao qual chamaram de Ancardia floresceu: a igualdade prevalecia, a justiça era absoluta e a guerra, inexistente. Viviam do que produziam, e cada um tinha sua parte- não conheciam a fome, a pobreza, a miséria ou a desigualdade.
E por não haver necessidade, por não haver razão para o progresso, ao alcançar certo nível de desenvolvimento, a sociedade estagnou. E continuaram sua vida idílica e utópica, restringidos ao seu pequeno mundo, vivendo cada dia como o anterior. Não obstante, o nascimento da segunda filha de Hyacinth e Elren Arcalimë abalaria o mundo, mudando completamente o status quo: uma garotinha de olhos platinados e penas saindo das costas, os símbolos dos Arcanjos. Ancardia irrompeu em celebrações, aclamando-a como uma dádiva de Eslien, um sinal de que estavam no caminho certo. Mesmo Hiranys, Calthea e Nessiah falharam em enxergar o verdadeiro significado por detrás do nascimento da menina. Hysteria Aries Arcalimë não era uma dádiva divina, mas sim o aviso à quebra do Equilíbrio, o arauto da destruição do paraíso. Além das fronteiras dimensionais, a discórdia se alastrava entre o Caos e os Tronos, e o conflito se tornara inevitável.
Um dos mundos favoritos de Eslien e uma pequena joia que servira de exemplo para tantos outros, Ancardia foi um dos primeiros a ser atingido pela ira do primeiro ser. A terra rachou, as florestas queimaram, as tempestades destruíram os campos e as colheitas; o sol e as estrelas foram engolidos pelo vazio e a noite se tornou eterna. Os lagos congelaram, a neve começou a cair- e nunca mais parou. As deidades criadas pelo Vazio e que conduziram o genocídio tinham ordens de destruir tudo e todos, e os Arcanjos sabiam disso. Contudo, se pudessem salvar apenas um, se alguém pudesse continuar adiante e guardar a memória de tudo o que foram... Então, de algum modo, Ancardia continuaria viva. E para essa missão, não havia ninguém mais adequado do que a mais nova deles, a garotinha com espetaculares poderes mentais. Foram necessários os sacrifícios de Calthea, Hiranys e Nessiah somados aos próprios poderes de Hysteria para ocultá-la dos invasores. Ela não sabia o que estavam acontecendo, não sabia por que ouvia gritos, porque o mundo mudara, e ninguém lhe explicou antes de perder a consciência.
E quando acordou, estava sozinha. Ao ver que alguém sobrevivera, Caos resolveu que não a mataria. Não, para aquela cuja casa e tudo que conhecia estavam mortos, a maior punição de todas era sobreviver. Tornada imortal, Hysteria foi condenada a vagar para sempre entre os mundos, carregando em sua mente todo o sofrimento de seu povo, procurando até o fim dos tempos por sobreviventes que não existiam.
O paraíso foi perdido e no fim só restou um mundo de gelo e trevas, com recorrentes tempestades de neve e os corpos dos mortos caídos no chão, assombrado para todo o sempre pelas vozes dos fantasmas gritando por socorro. A última dos Arcanjos selou o mundo de Ancardia de modo que ninguém jamais voltasse àquela terra condenada, ao legado de um passado e de um poder tão sombrios que melhor estavam esquecidos. No centro do mundo, onde antes se estendia o Castelo de Diamante dos Arcanjos, aprisionado em um pilar místico de gelo, o corpo da última sobrevivente se encontra, acorrentado para sempre ao seu decrépito mundo.
❖Personagens de Ancardia escreveu:Hysteria Aries Arcalimë